LÁGRIMAS NEGRAS
Unica Zurn, O Homem-Jasmim, tradução de Célia Henriques, Lisboa, & etc,
2000.
Lágrimas
negras, era assim que Unica Zurn, a mulher do pintor Hans Bellmer, chamava aos
cachos de uvas quando os apanhava nos hospitais de loucos onde por várias vezes
foi internada. É uma vida por desvendar, mas não perdida. Unica Zurn deixou
vestígios, este livro póstumo, O
Homem-Jasmim, agora editado pela & etc, inúmeros anagramas reunidos em Hexentexte (1954), únicas obras que
ainda viu publicadas além de outros contos e folhetins em jornais berlinenses.
Não é muito, mas pelo menos este livro é
muito bom. Relata a luta que a escritora travou de olhos bem abertos e
conhecimento aceso com a loucura que a circulava. É impressionante a lucidez
com que Unica Zurn observa todos os sintomas, todos os percalços a que está
sujeita pela demência de que procura fugir. Mas sem que haja em si nenhum medo
nem recuo perante os fantasmas que a assaltam, derrubam e espezinham. Ela
ergue-se sempre. No ringue-hospital comparecem fealdade, miséria, carência e um
despojamento tão grande que quase toca a indignidade. E o mau cheiro, corpos
insalubres nas enfermarias desoladas, a maior parte envoltos em camisas de
forças que os amarram às camas tão pútridas quanto as dos animais cativos.
«Aqui uma chora porque em breve será “o caso mais célebre” que o mundo alguma
vez viu. Outra prossegue uma caminhada sem fim e diverte-se com coisas que
ninguém imagina. Uma terceira encontra-se na floresta da sua cabeceira e talvez
se passeie por lá». E a escritora assiste a tudo com grande compaixão, mas
atendendo todos os pormenores para que possa descrevê-los mais tarde com
minúcia. O que resulta num estilo em que a poesia não cai na lamechice mas
reconstitui o universo combustível com materiais à vista, cimentos de outras
épocas, salitres, cacos. Na escrita de Zurn interpõem-se memórias que
transformaram o século XX numa arma de repetição, sucessivos massacres
alteraram a geografia, avançaram ou recuaram fronteiras. Etnias, povos,
cidades, crenças milenares volatilizadas à força de bomba. O Homem-Jasmim não trata apenas da loucura individual circunscrita
mas de uma outra demência. A que persiste em todos os seres humanos capazes do
mal absoluto e também de um bem mais relativo. Unica Zurn não se evade através
da sua doença para um mundo onde não acontece nada que lhe diga respeito. Antes
pelo contrário, transforma essa fonte envenenada em capital. Conquista um país
e povoa-o de inquietações, desordens mas também beleza e sofrimento. Evoca
idades de ouro que tanto podem sedear-se na infância como no encontro de anjos
ou homens tocados pela perfeição, o que dá no mesmo.
«Um segundo homem vestido de branco, um
homem que lhe mete medo. Parece exactamente uma aparição que viu nas nuvens no
dia 6-6-66: a alma branca, plástica, dum judeu que os nazis fizeram morrer na
câmara de gás dum campo de concentração. Tem caracóis loiros. Estes formam
sobre a cabeça dois cornos que não têm nada a ver com o diabo, mas parecem as
duas pequenas chamas que Moisés exibiu na Bíblia ilustrada para crianças que
outrora possuiu. Um Moisés que, já não se lembra em que altura, apresentava
chamas na cabeça. Sente angústia ao ver aquela alma judia novamente
transformada num corpo. Ele sorri. Fica aliviada quando ele sai do aposento. O
seu sorriso era inquietante, como se tivesse vontade de submetê-la a tortura por
ela ser originária daquele povo que construiu os campos de concentração».
É entre duas balizas que Unica Zurn joga
a sua partida: a beleza e o inferno. Quase nunca perde o equilíbrio nessa doida
travessia onde com determinação acaba por perder a vida. Atirar-se-á da janela
do apartamento de Hans Bellmer, que encontra em 1953 e com quem mantém uma
ligação que se vai complicando a ponto de, a certa altura, o casal viver em
Paris como «companheiros de miséria». Em 1960 aparecem os primeiros sintomas da
doença psíquica e até ao suicídio da escritora, em 1970, acontecerá um vaivém
de internamentos em clínicas, ponteados de episódios dramáticos e outros
bastante burlescos. Como o daquele velho com quem passa a noite a conversar e a
quem de manhã, sem mais nem menos, retira os óculos. Atira-os pela janela e
deixa a criatura em lágrimas, lamentando--se por não ver um palmo à frente do
nariz. Unica Zurn é atreita a alucinações repentinas que por vezes lhe
descerram portas sobre belos lugares e outras a submetem a torturas sem fim.
Mas nesse dilaceramento nunca perde por completo o tino e examina tudo, mesmo
em agonia, nunca perdendo de vista o esplendor do mundo.
Os seus amigos chamam-se Man Ray, Hans Arp
e sobretudo Henri Michaux que também participa neste livro, personagem
emblemático que ela designa por H.M. e venera. Há uma curiosidade nesta
escrita: a numerologia. Tal como Sade, embora noutro sentido, a escritora usa
os números para interpretar ou interrogar o destino. Transforma-os assim em
novas personagens de corpo inteiro. «De que dons tem a loucura poder de
detê-la!».
A capa tem a qualidade a que Vera Pinto
já nos habituou e enriquecem o livro algumas fotografias e dois prefácios de
Sabrina Ebbersmeyer e André Pieyre de Mandiargues.
Resgate (Averno 096)